Começamos a existir Naquele Sonho que faz realidade todos os outros, derramando o Seu amor, através do amor de dois seres humanos, e, no milagre da vida, descobri-mo-nos capazes de pensar, de amar, de chorar, mas também de sorrir. Misturando este sonho, agitado pela vida, assim pensamos... e do pensar a letra se faz, e da Palavra se recomeça de novo, como na Origem.

01 abril 2012

O início de um caminho, o Dele


«Um de vós irá atraiçoar-me, tu irás negar-me, todos irão abandonar-me!»
A via dolorosa de anuncia-se antes deste momento. E podemos antecipar um pouco o momento que acabámos de escutar. Jesus decidira comer a Páscoa com os discípulos. E nessa mesma refeição um foi o que saiu para cumprir a traição, Judas, outro aquele que disse a Jesus que ainda que todos o abandonassem, ele não, Pedro, e todos, disse Jesus, todos o abandonariam.
«Pai, afasta de mim este cálice!»
Consciente da sua sorte, Jesus reza àquele que o podia livrar, que lhe afastasse o cálice que estava prestes a beber, e que acabaria por ser a sua entrega por todos na Cruz para remissão dos pecados. Entregando-se à vontade do Pai, Jesus experimenta porém em si a dor do abandono de todos. Nesta mesma hora até o Pai parece ser indiferente às suas súplicas.
«Amarraram-no»
O beijo de Judas, aquele grupo com espadas e varapaus ao encontro de Jesus, a sua prisão, o abandono e a fuga dos discípulos, de Anás para Caifás – este que tinha dito que era melhor um só morrer por todos – a bofetada do primeiro, contrastam claramente com a inocência do prisioneiro: «Se disse algo de mal, mostra-me, senão porque me bates?»
A negação de Pedro, aquele que poucas horas antes tinha assegurado a Jesus que jamais o negaria, confirma categoricamente o que Jesus predissera.
Nos tribunais
Aos olhos dos judeus o crime de Jesus era claro. Por isso o interrogam, «diz-nos, és tu o Messias?» «Então és tu o Filho de Deus?». Claro que para O levarem à presença de Pilatos, a acusação transforma Jesus no Rei dos Judeus, agitador de multidões. Nenhum quer julgá-lo. Nem Herodes, nem Pilatos. Herodes despreza Jesus, e aproveita a ocasião para ter um gesto que repõe a sua amizade com Pilatos, enviando-lhe o prisioneiro para que fosse ele a decidir, reconhecendo assim importância ao procurador romano. A multidão deixa-se conduzir e prefere Barrabás ao criminoso Jesus. Grita mesmo a Pilatos «Crucifica-o!». Os chefes dos sacerdotes reconhecem mesmo como único rei o imperador. E Pilatos lava também as mãos, e entrega-lhes o condenado. Terceiro momento definitivo neste julgamento: é a coroação de espinhos de Jesus pelos soldados, vestindo-lhe a capa vermelha, escarnecendo e cuspindo sobre ele. «Viva o Rei dos Judeus!» 

 Talvez como nenhum outro acontecimento no Evangelho este coloque diante de nós até onde pode a maldade humana. Sabemos bem, o inocente vai carregar a cruz. O único Justo pelos injustos. Porém, tal qual aquela multidão, permanecemos incapazes de mudar a nossa opinião, apesar da verdade que sabemos no nosso coração. Teimamos em ser essa massa humana sem forma, de homens e mulheres incapazes de nos compadecermos verdadeiramente do sofrimento dos inocentes. Naquele tempo Jesus foi carregado com a cruz da mentira, hoje continua a ser carregado constantemente com a cruz da maldade, do egoísmo, do pecado, da solidão, da dor, da injustiça de quantos cristos são hoje de novo escarnecidos, cuspidos, revestidos com a púrpura da indiferença, e coroados com os espinhos do ódio humano. Jesus foi tão somente aquele que aceitou carregar de uma vez por todas a cruz imerecida de tudo isso.
Não pensemos que seríamos diferentes se nos tocasse a nós estarmos na presença de um julgamento tão injusto. Aquele povo não teve mais culpa que nós. Aquela multidão não era nem melhor nem pior que nós hoje. Aqueles homens e mulheres não experimentaram mais a graça de Deus que nós aqui. Aqueles discípulos que o negaram e fugiram, continuamos a ser hoje nós, capazes de dar o beijo da traição àquele a quem chamamos Mestre, e a dizer «não conheço tal homem», quando nos pedem razões da nossa fé.
Outros são os julgamentos colocados diante dos nossos olhos em todos aqueles que sofrem e, quem sabe, ainda que salvássemos Jesus, naquele tempo, continuaríamos a condená-lo hoje, como infelizmente o fazemos até no irmão mais próximo. Hipócritas, vemos o argueiro no olho do vizinho, e permanecemos incapazes de ver a trave em nós próprios. Apedrejamos todos aqueles que são apanhados em flagrante delito, e não fazemos ao mais pequeno, aquilo que pensamos ser capazes de fazer a Jesus. Não compreendemos o que é entregarmo-nos como Ele nas mãos do Pai. Então, adormecemos. Abandonamo-lo. Fugimos. Somos até capazes de esbofetear a verdade da Sua Palavra, apesar de a sabermos ser verdadeira, e de vida eterna. E amarrando-O, amarramo-nos a nós mesmos e à verdade das nossas vidas. Não percebemos como pode o perdão e o amor serem caminhos de um Messias, do Filho de Deus, do Salvador do mundo.
Acreditamos mais noutras salvações, aliás, colocamos a nossa esperança na saída da crise, económica ou qualquer que seja, através daqueles que antes não suportávamos. Já não é Jesus o nosso Rei, não temos outro senhor senão o mundo. E aqui reside a nossa cobardia, e ao mesmo tempo a nossa tentativa de lavarmos as mãos. Outros o crucificaram. Não nós. Não os nossos erros nem os nossos pecados.
Percorremos as ruas da nossa existência procurando uma resposta para a maldade, o erro, o pecado e a miséria humanas. E atrevemo-nos a apontar, por vezes, com muitos dos nossos contemporâneos, o dedo a Deus. «Crucifica-O», repetimos. Não fomos nós que deixámos de partilhar o que temos, «Crucifica-O». Não fomos nós que não ousámos amar o outro na sua verdade, «Crucifica-O». Não fomos nós que usámos mal a nossa liberdade, escolhendo o que nos prende, «Crucifica-O».
Diante deste espetáculo que coloca frente a frente o imenso amor de Deus e a estupidez humana, sentimo-nos tentados a desviar o olhar. Nem espetatores porventura quereríamos ser. Porém, infelizmente, somos atores. 
Eis que de novo hoje pudémos reviver a Paixão de Jesus. Longe do drama histórico, este ato de piedade, volta de novo a fazer-nos percorrer o caminho da dor. Entendemos pela fé o que significa Deus ter amado tanto o mundo que lhe deu o seu filho único. Porém queríamos na vida «ver Jesus», «ter um coração puro», e percebe-lo já glorioso nas nossas vidas, ajudando-nos a levar as nossas pequenas cruzes, que tantas vezes pensamos serem maiores que a dele. Entretanto o nosso maior obstáculo está não fora, mas dentro. Enquanto não aceitarmos com a vida a sua morte por nós, enquanto não estivermos todos os dias gratos pelo dom infinito do seu amor, enquanto não virmos no outro a imagem do único Justo. Enquanto assim for, podemos continuar a percorrer, até cheios de devoção, cada uma das estações deste caminho doloroso. Mas ele nunca deixará de ser um caminho vazio. Porque o fechamos num local e numa época concreta. Mas não deixamos que Jesus na nossa vida nos ensine a caminhar, seguindo-lhe os seus passos.
Jesus não se nega a si mesmo, e aceita por amor, e só por amor, levar a nossa Cruz. Por nós, Ele tornou-se maldito, condenado a um martírio, preso a uma cruz, vilipendiado entre malfeitores, escarnecido como um pecador. Por nós ele fez-se pecado, para que nós fossemos justiça de Deus.

Faz-nos, Senhor Jesus, capazes de imitar na vida o teu exemplo, para que carregando contigo a Cruz, possamos contigo entregar-nos à vontade amorosa do Pai.


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