Começamos a existir Naquele Sonho que faz realidade todos os outros, derramando o Seu amor, através do amor de dois seres humanos, e, no milagre da vida, descobri-mo-nos capazes de pensar, de amar, de chorar, mas também de sorrir. Misturando este sonho, agitado pela vida, assim pensamos... e do pensar a letra se faz, e da Palavra se recomeça de novo, como na Origem.

01 maio 2010

Já não vos chamo servos, mas AMIGOS!

Num jogo de futebol, os que estamos a assistir somos todos adeptos. Num concerto, somos fãs. No cinema, espectadores. Nas profissões, que cada um de nós tem ou teve, somos chamados colaboradores. Numa colectividade das que existem por aí, somos sócios, e até há os que são sócios honorários. E, talvez noutras zonas, há os aficionados das touradas. Na Igreja, seja aqui, seja na nossa forma de nos relacionarmos em Igreja, habitualmente, chamamo-nos uns aos outros «irmãos e irmãs». E porquê? Porque em Jesus Cristo Deus assume a humanidade, elevando a nossa humanidade a um grau superior de fraternidade. Já não é apenas porque somos todos humanos que nos consideramos irmãos e irmãs. Mas é porque, em Jesus Cristo, Deus revelou-se, ao menos, como o melhor Pai que pode haver. Será que nós nos sentimos filhos muito amados desse Pai? Ou seremos nós adeptos, fãs, espectadores, colaboradores, sócios ou até aficionados?
Embora o evangelista João coloque estas palavras na boca de Jesus, no momento da Última Ceia, a liturgia de hoje retoma-as num momento ainda mais pascal. Se olharmos para o texto, podemos tomar consciência de que Jesus se está a “despedir “ dos seus discípulos. Dentro de pouco tempo, Ele já não estará com eles como até então. Quem poderá preencher o Seu vazio? Repare-se que João anota o pormenor que Jesus falou depois que Judas saiu. Judas que representa aqui a perspectiva de entender a cruz como um fracasso, como o fim de tudo, como o «adeus até nunca mais» de Jesus aos seus discípulos. Jesus diz-lhes: dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Se souberem amar-se uns aos outros como Jesus o fez, não deixarão nunca de o sentir presente no meio deles. Claro que para vivermos desta forma, será já muito positivo se vivermos como irmãos. Mas João coloca na boca de Jesus mais alguma coisa: vós sois meus amigos; já não vos chamo servos mas amigos. Então a comunidade de Jesus será uma comunidade de amizade. A Igreja é a comunidade dos amigos de Jesus. Claro que esta imagem depressa ficou esquecida. Estamos todos mais habituados a entendermo-nos como uma família, a família de Jesus. Por isso durante séculos a fio, e quem sabe ainda hoje, alguns nessa família são pais (o papa, os bispos, os sacerdotes, os abades…)e outros são filhos (os fiéis) e todos hão-de viver como irmãos. Se entendermos assim a comunidade cristã, estimulamos a fraternidade. Porém corremos alguns riscos. Na família cristã tende-se a sublinhar «o papel» que corresponde a cada um. Destaca-se o que nos diferencia, não aquilo que nos une. Dá-se muita importância à autoridade, à ordem, à unidade, à subordinação. Os riscos que se correm são visíveis: promove-se a dependência, o infantilismo e a irresponsabilidade de muitos. Afinal, na comunidade de Jesus, entendida assim, mesmo que um filho faça alguma coisa mal, ou nem sequer faça, haverá sempre um dos que é pai que virá corrigir, fazer ele mesmo, ou mandar fazer.
Em ambiente pascal, como o que estamos a viver, a Palavra de Deus sugere esta imagem da «comunidade baseada na amizade cristã». É uma imagem sem dúvida riquíssima, e que poderia não apenas enriquecer, como transformar hoje, agora, a Igreja de Jesus, a começar pela nossa paróquia. É que a amizade promove o que nos une, e não o que nos distingue. Entre amigos cultiva-se a igualdade, a reciprocidade, o apoio mútuo. Ninguém está por cima de ninguém. Nenhum amigo é superior ao outro. Respeitam-se as diferenças, mas procura-se a proximidade e a relação.  Entre amigos e amigas é mais fácil sentir que afinal a responsabilidade da Igreja de Jesus Cristo, é missão de todos, e que o seu mandamento novo nos envolve a todos. É mais fácil sentirmos que todos temos de colaborar, que temos de estar abertos aos estranhos e indiferentes ou alheados da nossa comunidade, porque precisam de ser acolhidos e precisam da nossa amizade. De uma comunidade de amigos é mais difícil alguém ir-se embora. De uma comunidade fria, rotineira e indiferente, as pessoas vão-se embora, e os que ficam só têm pena. Mas não sentem necessidade de meter mãos à obra. Jesus Cristo ressuscitado deu a Sua vida por nós a fim de que não fossemos nem frios, nem rotineiros, nem indiferentes, nem descomprometidos, nem adeptos, fãs, espectadores, colaboradores, sócios, e nem sequer aficionados. Amar-nos uns aos outros é impossível se nos sentirmos assim. O amor a que Jesus nos chama é um amor semelhante ao seu: desinteressado, libertador, de Deus. O desafio do mandamento novo de Jesus tem de ser assumido por nós. Irmãos e irmãs? sim. Mas somos sobretudo aqueles a quem Jesus chamou amigos. Aqueles que havemos de cada dia acolher o seu triunfo da Páscoa, que nos enche de esperança, e que nos dá forças para lutarmos cada dia, a fim de construirmos já aqui o princípio dos novos céus e da nova terra, onde Ele nos espera, como Cordeiro que foi imolado, sentado no trono. Claro que é necessário, como dizia a primeira leitura, «sofrer muitas tribulações para entrar no reino de Deus». Mas Deus está connosco. Do 1º ao último dos livros da Sagrada Escritura, Deus revela-se como um Criador apaixonadamente laborioso em favor dos homens. No princípio, para nos dar um ambiente que nos acolhesse. No fim, para o refazer, após uma história de pecado, que inevitavelmente nos conduziria à ruína. Aí Ele enxugará todas as lágrimas dos nossos olhos. Isto é Páscoa. Estaremos nós decididos a deixar-nos transformar na Páscoa que celebramos? A passar de adeptos, fãs, espectadores, colaboradores, sócios, ou aficionados, a irmãos e irmãs, mais ainda, a sermos hoje aqueles a quem Jesus não chama servos mas amigos?

2 comentários:

Aristarco disse...

Boa e saudável reflexão sobre o texto bíblico. Gosto da ideia da igreja como uma comunidade de amigos. Também achei interessante sua percepção de que a ênfase na hierarquia propicia o risco de nos esquecermos iguais: amigos.

L. F. Pires disse...

É difícil hoje encontrar uma definição para Ser amigo, pois amizade, hoje em dia, só se justifica quando há interesse.
Procurei em vários dicionários da língua portuguesa o seu sentido e não encontrei definição como a bíblica em João 15.13 Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos.
Ser amigo é dar, mas dar o mais importante a vida.
Paulo no seu dilema expressa o desejo, verdadeiro, do seu coração, sem saber o que escolher entre a morte para estar com Cristo ou continuar a dar vida, dolorosa, para seus amigos.
Para mim, dar é o estilo de vida que dá cor ao Cristianismo, seja a um amigo ou não, a mensagem da cruz pintou no mundo a dádiva de Deus para com os homens, vivida na pele de Jesus.
Obrigado por alargar meus horizontes, deixe-se usar, afinal este é o nosso Deus!